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sexta-feira, 11 de abril de 2014

O racista e o manipulado pela mídia

Há alguns anos atrás, tive a oportunidade de fazer uma disciplina com a professora Martha Abreu na qual os estudantes foram incentivados e a desenvolver aulas e projetos pedagógicos de caráter antirracista. Até hoje, nesses meus 4 anos e meio de UFF, foi uma das melhores disciplinas que já cursei e uma das que mais contribuíram para a minha formação enquanto historiador e cidadão, por vários motivos que não cabem aqui explicar. Mas enfim, em umas das intensas e interessantes discussões realizadas durante o curso, muito se leu e se falou que o racismo brasileiro é como se fosse um assassinato sem corpo, ou seja, de difícil identificação. Por quê? Porque o racismo sempre está no outro, nunca em nós. Se eu perguntar para você que está lendo este texto a seguinte pergunta: "você é racista ou já cometeu atos racistas?", a sua resposta provavelmente será "não". No entanto, se a pergunta for "Você conhece alguém que seja racista ou que tenha cometido um ato racista?", as chances da sua resposta ser positiva aumentam razoavelmente. Isso porque nós sabemos que o racismo é crime e algo totalmente repulsivo. Então, não queremos ser associados a quaisquer tipos de práticas racistas porque certamente seremos repreendidos e reprovados. Também aprendemos na escola que a "Raça", em termos biológicos não existe, e tendemos a acreditar que o simples fato de termos isso em mente é suficiente para termos superado a nossa herança maldita da escravidão. Falando em escravidão, também tendemos a acreditar que com o fim dela, quaisquer tipos de tensões raciais deixaram de existir em 1888, ou então que quaisquer atos racistas estejam somente ligados a ela. Infelizmente não é bem assim. Inúmeros estudos sobre o negro no pós-abolição no Brasil mostram que a condição de vida da população negra não melhorou significativamente em termos econômicos e sociais (apesar de não negar o grande avanço que foi o fim da escravidão, obviamente), muito por conta da vinda de imigrantes europeus (num projeto de embranquecimento da população, baseada nas teorias da ciência racialista da segunda metade do século XIX) que passaram a ocupar os melhores postos de trabalho. Enfim, tem muito mais do que isso que eu to falando bem resumidamente. O ponto é: por mais que saibamos que Raças, no sentido biológico da coisa, não existam, a composição da nossa sociedade ainda leva consigo muitas características de uma época em que se acreditava na existência delas. Em outras palavras, o conceito de Raça foi superado, mas o racismo (cultural e estrutural) não.

Mas ai você se pergunta: o que racismo brasileiro e manipulação da mídia tem em comum?
Eu respondo: Tudo.
Por quê? Vamos lá:

Da mesma forma que o racismo no Brasil se dá de maneira velada, onde ninguém admite a sua parcela de culpa, uma forma comum de desqualificar o posicionamento alheio é dizer: "Fulano/a é manipulado/a pela mídia/Globo/Globosta/etc.". E aí eu faço uma pergunta parecida com a que eu fiz acima: "Você, caro/a leitor/a, é manipulado/a pela mídia?". Eu tenho certeza absoluta que você vai dizer que não. E faço mais uma pergunta parecida com a outra lá de cima: "Você conhece alguém que seja manipulado/a pela mídia?". Provavelmente, a sua resposta será positiva. Qual o grande problema disso? Muitas vezes não nos damos conta do grande império de comunicação que existe nesse país, chefiado pela família Marinho, mas que conta também com os Civita, Abravanel, Igreja Universal, e talz. E caímos mesmo na tolice de acreditar que, por termos estudado um pouquinho e por termos acesso a internet, estamos totalmente livres do domínio midiático, sem muitas vezes sequer levarmos em conta que as grandes empresas de comunicação tem um traço classista lógico em sua produção majoritária. Acreditamos mesmo que estamos livres de toda a enxurrada cultural da Globo e suas parceiras. Essa estrutura tem suas consequências totalmente danosas para a nossa democracia (se é que dá pra chamar isso aqui de democracia). E tendemos a colocar a culpa no outro sobre estas consequências. O problema sempre está no outro. Que vota mal, que não tem opinião própria, que "só vê novela e futebol" etc. E aí passamos a rejeitar qualquer coisa que venha da tal mídia demoníaca por causa das consequências que ela gera no outro, mas em nós, seres iluminados e perfeitamente pensantes, jamais. Exemplo: no final da novela do Félix (esqueci o nome e fiquei com preguiça de procurar, foi mal), houve um beijo entre dois caras. Parte das pessoas comemorou o que aconteceu, por acreditar que a visibilidade maior dada aos homossexuais é uma ferramenta importante para o combate à homofobia. Outras pessoas caíram na sandice de sair falando mal da emissora por estarem passando "sem vergonhices" em horário nobre que só alienariam muito mais nossa população. Ou seja, combatemos a ~~alienação midiática~~ com homofobia? Quem achou o beijo gay um avanço na visibilidade homo afetiva é necessariamente alienado/a pela mídia? E quem falou mal da Globo por conta do episódio é uma pessoa intelectualmente independente e super instruída, diferentemente dos outros que comemoraram?

O que eu quero dizer é o seguinte: muitas vezes acreditamos que estamos combatendo o racismo sem necessariamente contribuir para uma real igualdade entre pessoas de diferentes cores porque acreditamos que tal igualdade já existe ou está muito próxima, daí pensamos que precisamos fazer pouco para alcançá-la, ou então, deixar o assunto pra lá, porque se não falarmos mais nisso, uma hora vamos esquecer e vai ficar tudo certo. Da mesma forma, tendemos a rechaçar qualquer coisa que venha da grande mídia sem qualquer reflexão crítica porque achamos que estamos livres dela, e/ou que tudo que venha dela é ruim. Pior ainda, não levamos em consideração as disputas que ocorrem dentro dela, que são disputas (ainda que tenha muitas limitações)que se dão em outros espaços da sociedade. Qual é a consequência disso? Acabamos por ser contra o racismo sem discutirmos a estrutura da sociedade com traços raciais bem definidos, e combatemos o que é veiculado pela mídia utilizando as mesmas ideologias dessa mídia que tanto criticamos. Basta ver quantas pessoas detestam a Globo e são a favor de pena de morte, da redução da maioridade penal, contrárias às cotas raciais (propostas que estão de total acordo com o pensamento da classe dominante, da qual os grandes impérios de comunicação fazem parte), etc. Estou querendo dizer que todo mundo que é a favor da pena de morte e das outras propostas seja ~~manipulado pela mídia~~? Não necessariamente. Creio que muitas pessoas sofram influência da mesma em diversos aspectos de suas vidas (desde o tipo de música que ouve, passando pela roupa que veste, até a sua cultura política) mesmo que não queiram, da mesma forma que acredito que muitas pessoas, mesmo não se identificando como racistas, praticam o racismo direta ou indiretamente no cotidiano. O primeiro passo para nos livrarmos disso tudo é termos plena consciência de que somos seres influenciados e influentes, e numa sociedade desigual como a nossa, é muito difícil se ver livre dos padrões e da noção de cultura dominantes.

Não é feio, admitir que já praticou racismo alguma vez na sua vida, feio é querer esconder isso, fechar os olhos para ele e dizer que tá tudo bem, porque temos as mesmas capacidades e potencialidades (isso todos já sabemos, precisamos ir além disso). Também não é feio admitir que sofre influência da Globo e emissoras afins. Feio é achar que você é uma ilha. Ainda mais quando tá escrito na tua cara que não é. Beijos no cérebro e vamos à luta. Até a próxima.